Justiça, Administração, Polícia – Pierre Joseph Proudhon

Justiça

Justiça, Autoridade, termos incompatíveis, mas que o homem comum obstina-se em fazer sinônimos. Ele diz autoridade de justiça, assim como governo do povo, por hábito do poder, e sem perceber a contradição. De onde vem essa depravação de idéias?

A justiça começou como a ordem, pela força. Lei do príncipe na origem, não da consciência; obedecida por temor, não por amor, ela se impõe em vez de expor: assim como o governo, não é outra coisa senão distribuição mais ou menos calculada do arbítrio.

Sem ir além de nossa história, a justiça era na Idade Média uma propriedade senhorial, cuja exploração ora se fazia pelo senhor em pessoa, ora era confiada a arrendatários ou intendentes. Estava-se à mercê da justiça do senhor como se estava sujeito à corveia, como ainda hoje se é contribuinte. Pagava-se para se fazer julgar, assim como para moer seu trigo e assar seu pão: é óbvio que aquele que pagava mais tinha maior chance de ter razão. Dois camponeses convictos de fechar um acordo diante de um árbitro teriam sido tratados como rebeldes, e o árbitro perseguido como usurpador. Pronunciar a justiça alheia, que crime abominável!…

Pouco a pouco, agrupando-se o país em volta do primeiro barão, que era o rei da França, presumiu-se que toda a justiça dele dependia, fosse como concessão da coroa aos feudatários, fosse como delegação a companhias executoras de justiça, cujos membros pagavam seus impostos, assim como hoje fazem os escrivães procuradores, mediante uma polpuda soma.

Enfim, desde 1789, a Justiça é exercida diretamente pelo Estado, que sozinho pronuncia julgamentos executórios , e fatura, sem contar as multas, uma soma fixa de 27 milhões. O que ganhou o povo com essa mudança? Nada. A Justiça permanece o que era antes, uma emanação da autoridade, isto é, uma fórmula de coerção radicalmente nula, e em todas as suas disposições, recusável. Não sabemos o que é a justiça.

Amiúde ouvi discutirem essa questão: tem a sociedade o direito de punir com a morte? Um italiano, gênio de resto assaz medíocre, Beccaria, construiu no século passado uma reputação pela eloquência com a qual refutou os partidários da pena de morte. E o Povo em 1848 acreditou ter feito maravilha, enquanto aguarda algo melhor, ao abolir essa pena em matéria política.

Mas nem Beccaria, nem os revolucionários de fevereiro abordaram o fundamental da questão. A aplicação da pena de morte é apenas um caso particular da justiça criminal. Ora, trata-se de saber se a sociedade tem o direito, não de matar, não de infligir uma pena, por mais leve que seja, nem mesmo de absolver e agraciar, mas de julgar.

Que a sociedade se defenda, quando é atacada, é seu direito.

Que ela se vingue, com risco de represálias, isso pode ser de seu interesse.

Mas que ela julgue, e, depois de ter julgado, puna, eis o que não aceito; não aceito porque recuso toda autoridade, qualquer que seja.

Só o homem tem o direito de se julgar, e se ele se sente culpado, se crê que a expiação é-lhe boa, de reivindicar para si um castigo. A justiça é um ato de consciência, essencialmente voluntário: ora, a consciência não pode ser julga condenada ou absolvida senão por si mesma: o resto é guerra, regime de autoridade e barbárie, abuso de força.

Vivo em companhia de infelizes – é o nome que eles se dão -, que a justiça arrasta diante dela por causa de roubo, falsificação, falência, atentado ao pudor, infanticídio, assassinato.

Compreendo que esses homens, em guerra com seus semelhantes, sejam intimados, obrigados a reparar o dano que causam, a suportar as conseqüências de seus atos, e até um certo ponto, ainda pagar a multa pelo escândalo e pela insegurança com maior ou menor premeditação, de que são sujeitos. Compreendo, eu dizia, e aplicação do direito da guerra entre inimigos. A guerra também pode ter, não digo sua justiça, seria profanar esse santo nome, mas sua balança.

Todavia, fora disso, que esses mesmos indivíduos sejam trancafiados, sob pretexto de penitência, em estabelecimentos de força, estigmatizados, acorrentados, torturados em seus corpos e suas almas, guilhotinados ou, o que é pior, colocados para cumprir suas penas sob a vigilância de uma polícia cujas inevitáveis revelações perseguem-nos no fundo de seu refúgio; mais uma vez nego, da maneira mais absoluta, que nada, nem na sociedade, nem na consciência, nem na razão, autoriza semelhante tirania. O Código não faz justiça, mas vingança, a mais iníqua e a mais atroz, último vestígio do antigo ódio das classes patrícias contra as classes servis.

Que pacto fizestes com esses homens, para que vos arrogueis o direito de torná-los responsáveis por seus crimes, pelo grilhão, pelo sangue, pelo ferrete? Que garantias ofereceste-lhes, pelas quais podeis vos gabar? Que condições eles tinham aceitado e que violaram? Que limite, imposto ao transbordamento de suas paixões e reconhecido por eles, excederam’? O que fizestes por eles, enfim, que eles devam ter feito por vós, e o que vos devem? Procuro o contrato livre e voluntário que os une, e só percebo a espada de justiça suspensa sobre suas cabeças, o gládio do poder. Exijo o compromisso textual e recíproco, assinado por suas mãos, que pronuncia sua decadência: só encontro as prescrições cominatórias e unilaterais de um pretenso legislador, que não pode ter autoridade a seus olhos senão pela assistência do carrasco.

Lá onde não há convenção, não pode haver, no foro exterior, nem crime nem delito. E pego-vos aqui por vossas próprias máximas: tudo o que não é proibido pela lei é permitido e A lei só dispõe para o futuro e não tem feito retroativo.

Pois bem! a lei – isso está escrito há sessenta anos em toda as vossas constituições – é a expressão da soberania do Povo, isto é, o contrato social, o engajamento pessoal do homem e do cidadão. Visto que não a desejei, que não consenti, não votei, não assinei, essa lei não me obriga a nada, ela não existe. Prejulgá-la antes de reconhecê-la, e beneficiar-vos dela contra mim malgrado minha protestação, é dar-lhe um efeito retroativo e violá-la. Todos os dias acontece-vos de anular um julgamento por um vício de forma. Mas não há sequer um de vossos atos que não esteja maculado de nulidade, e da mais monstruosa das nulidades, a suposição da lei. Soufflard, Lacenaire, todos os celerados que enviasses ao suplício, agitam-se em seus túmulos e acusam-vos de falsificação judiciária. O que tendes a responder-lhes?

Não falemos de consentimento tácito, de princípios eternos da sociedade, de moral das nações, de consciência religiosa. É precisamente porque a consciência universal reconhece um direito, uma moral, uma sociedade, que se deveria exprimir seus preceitos, e propô-los à adesão de todos. Vós o fizestes? Não! Editastes o que vos aprouve; e chamais esse édito de regra das consciências, ditame do consentimento universal. Oh! Há demasiada parcialidade em vossas leis, muitas coisas subentendidas, equivocadas, sobre as quais não estamos absolutamente de acordo. Protestamos contra vossas leis e contra vossa justiça.

Consentimento universal! Isso lembra o pretenso princípio, que nos apresentais também como uma conquista, segundo o qual todo acusado deve ser enviado diante de seus pares, que são seus.juízes naturais. Derrisão! Esse homem, que não foi chamado para discutir a lei, que não a votou, que sequer a leu, que não a compreenderia se pudesse lê-Ia, que nem mesmo foi consultado quanto à escolha do legislador, tem ele juízes naturais? Ora, capitalistas, proprietários, pessoas felizes, que se puseram de acordo com o governo, que gozam de sua proteção e de seu favor, estes são os juízes naturais do proletário! Esses são homens probos e livres que, sobre sua honra e sua consciência – que garantia para um acusado! -, diante de Deus – que nunca entendeu; diante dos homens, dentre os quais ele não está incluído, o declararão culpado; e se ele protesta contra as más condições que a sociedade lhe deu, se se recorda das misérias de sua vida e de todas as amarguras de sua existência, opor-lhe-ão o consentimento tácito e a consciência da espécie humana!

Não, não, magistrados, não sustentareis mais esse papel de violência e hipocrisia. Já é bastante que ninguém conteste vossa boa-fé, e que em consideração por essa boa-fé o futuro vos absolva, mas não ireis mais adiante. Não tendes valor par julgar; e essa falta de valor, essa nulidade de vossa investidura, ela vos foi implicitamente notificada no dia em que foi proclamado, diante do mundo, numa federação de toda a França, o princípio da soberania do Povo, que não é outro senão o da soberania individual.

Só há, lembrai-vos bem disso, uma única maneira de fazer justiça: que o acusado, ou simplesmente o intimado, o faça por si mesmo. Ora, ele o fará quando cada cidadão tiver aderido ao pacto social; quando, nessa convenção solene, os direitos as obrigações e as atribuições de cada um tiverem sido definidos, as garantias intercambiadas e a sanção subscrita.

Então a justiça, procedendo da liberdade, não será mais vingança, será reparação. Como não existirá mais oposição entre a lei da sociedade e a vontade do indivíduo, a recriminação ser-lhe-á estranha, ele só terá como refúgio a confissão.

Aí também a instrução dos processos se reduzirá a uma simples convocação de testemunhas, entre o queixoso e o acusado, entre o demandante e sua parte não será necessário outro intermediário senão os amigos aos quais solicitarão a arbitragem (…)

A abolição completa, imediata, sem transição, nem qualquer substituição que seja, das cortes e dos tribunais, é uma das primeiras necessidades da revolução. Qualquer prazo que se tome para as outras reformas (… ), em todos os casos, a supressão das autoridades judiciárias não pode sofrer adiamento. Do ponto de vista dos princípios, a justiça constituída é apenas uma fórmula do despotismo, por conseqüência, uma negação da liberdade e do direito. Lá onde deixarmos subsistir uma jurisdição, lá teremos erigido um monumento de contrarevolução, do qual ressurgirá cedo ou tarde uma autocracia política ou religiosa.

Do ponto de vista político, recolocar nas mãos das antigas magistraturas, imbuídas de idéias nefastas, a interpretação do novo pacto, seria tudo comprometer. Constatamos isso com grande facilidade: se os homens da justiça mostram-se impiedosos em relação a socialistas, é que o socialismo é a negação da função jurídica, assim como da lei que a determina. Quando o juiz sentencia um cidadão acusado, segundo a lei, por idéias, palavras ou escritos revolucionários, não é mais um acusado que ele golpeia, é um inimigo. Por respeito à justiça, suprimamos esse funcionário que, exercendo o direito, combate por sua toga e seu tribunal.

(…)

Administração, Polícia

Tudo é contradição em nossa sociedade: é por isso que não conseguimos nos entender e estamos sempre prontos à luta. A administração pública e a polícia vão oferecer-nos uma nova prova disso.

Se há hoje algo que pareça a todo mundo inconveniente, sacrílego, atentatório aos direitos da Razão e da Consciência, é um governo que, usurpando o campo da fé, teria a pretensão de regulamentar os deveres espirituais de seus subordinados. Mesmo aos olhos dos cristãos, semelhante tirania seria intolerável: na falta de insurreição, o martírio se encarregaria de responder. A Igreja, instituída do alto e inspirada, afirma seu direito de governar as almas; todavia, coisa extraordinária, e que da parte dela é um começo de liberalismo, recusa esse direito ao Estado. Não toquem no incensório, exclama aos príncipes. Sois os bispos de fora; somos os bispos de dentro. Diante de vós a fé é livre; a religião não provém de vossa autoridade.

Sobre esse ponto a opinião, ao menos na França, é unânime. O Estado ainda quer pagar o culto, e a Igreja aceitar a subvenção; quanto ao fundo do dogma e às cerimônias, o Estado não se imiscui de modo algum. Crede ou não, adorai ou não adorai nada, é ad libitiun . O Governo decidiu não mais intervir nos assuntos de consciência.

Ora, das duas uma: ou o Governo, fazendo esse sacrifício de iniciativa, caiu num grave erro; ou então, quis dar um passo para trás e nos dar uma primeira garantia de seu recuo. Por que, com efeito, se o Governo não se vê no direito de nos impor a religião, pretenderia em contrapartida nos impor a lei? Por que, não contente com essa autoridade de legislação, exerceria ainda uma autoridade de justiça? Por que uma autoridade de polícia? Por que, enfim, uma autoridade administrativa?…

Ora o Governo entrega-nos a direção de nossas almas – a parte mais séria de nosso ser – o governo da qual depende inteiramente – com nossa felicidade na outra vida – a ordem nesta aqui; e, tão logo se trata de nossos interesses materiais, assuntos comerciais, relações de boa vizinhança, as coisas mais vis, o Poder se mostra, intervém. O Poder é como a criada do padre, entrega a alma ao demônio; o que ele quer é o corpo. Desde que tenha a mão em nossos bolsos, zomba de nossos pensamentos. Ignomínia! Não podemos administrar nossos bens, acertar nossas contas, transigir sobre nossas diferenças, assegurar nossos interesses comuns, da mesma forma que não podemos sequer zelar por nosso bem-estar e cuidar de nossas almas? O que temos a ver com a legislação do Estado, a justiça do Estado, a polícia do Estado e a administração do Estado, mais do que com a religião do Estado? Que razão, que pretexto o Estado fornece dessa exceção à liberdade local e individual?

Dir-se-á que a contradição é apenas aparente; que a autoridade é, com efeito, geral e nada exclui; mas que, para seu mais perfeito exercício, ela teve de se dividir em dois poderes iguais e independentes: um, a Igreja, a quem é confiada a responsabilidade das almas; o outro, o Estado, a quem pertence o governo dos corpos.

A isso respondo, de início, que a separação do Estado e da Igreja não foi feita de modo algum com vistas a essa melhor organização, senão em conseqüência da incompatibilidade dos interesses que eles regem; em segundo lugar, que os resultados dessa separação foram os mais deploráveis, visto que a Igreja, tendo perdido a direção do temporal, acabou por não ser mais ouvida, mesmo no espiritual; enquanto o Estado, fingindo só se envolver com questões materiais e só as resolvendo pela força, perdeu o respeito e provocou por toda a parte a reprovação dos povos. E é precisamente por isso que o Estado e a Igreja, convictos, mas demasiado tarde, de sua indiscernibilidade, tentam hoje, por uma fusão impossível, reerguer-se, no momento mesmo em que a Revolução pronuncia simultaneamente sua dupla falência.

Mas nem a Igreja, faltando-lhe sanção política, poderia conservar a direção das idéias; nem o Estado, desprovido de princípios superiores, pode aspirar à dominação dos interesses; quanto à sua fusão, ela é ainda mais quimérica do que aquela entre a monarquia absoluta e a monarquia constitucional. O que a liberdade separou, a autoridade não reunirá.

Minha pergunta subsiste por completo: em virtude de que direito o Estado, indiferente às idéias e aos cultos, ateu como a lei, tenciona administrar os interesses?

A essa pergunta, inteiramente de direito e moralidade, opõem-nos:

1º Que os cidadãos e as comunas, não podendo conhecer interesses gerais, visto que não poderiam estar de acordo, necessitam de um árbitro soberano;

2º Que as coisas também não podendo caminhar em sua globalidade, unitariamente, se cada localidade, cada companhia, cada grupo de interesses fosse abandonado à sua própria inspiração, se os funcionários públicos recebessem tantas ordens diferentes, contraditórias, quanto há de interesses particulares, seria indispensável que a impulsão partisse de um motor único, conseqüentemente que os funcionários fossem nomeados pelo Governo.

Não se sai disso: antagonismo inevitável, fatal, dos interesses, eis o motivo; centralização ordenadora e hierárquica, eis a conclusão.

Foi segundo esse raciocínio que nossos pais, em 93, após terem destruído o direito divino, o regime feudal, a distinção de classes, as justiças senhoriais etc., reformaram um governo que tinha sua fonte no mandato eleitoral, e condenaram o partido da Gironda, que, sem poder dizer como tencionava conservar a unidade, não queria, contudo, segundo sustentam, centralização.

Podemos julgar os frutos dessa política.

(…)

Assim como a religião de Estado é o estupro da consciência, a centralização administrativa é a castração da liberdade. Instituições fúnebres, emanadas do mesmo furor de opressão e intolerância, e cujos frutos envenenados mostram muito bem a analogia! A religião de Estado produziu a Inquisição, a administração de Estado engendrou a polícia.

É verdade, compreendemos que o sacerdócio – que foi de início, assim como o corpo dos mandarins chineses, apenas uma casta de homens sábios e letrados tenha conservado pensamentos de centralização religiosa: a ciência, intolerante ao erro, como o gosto ao ridículo, aspira legitimamente ao privilégio de instruir a razão. O sacerdócio goza dessa prerrogativa desde que teve por programa a ciência, cuja característica é ser experimental e progressiva; ele a perdeu tão logo se pôs em contradição com o progresso e a experiência.

Mas que o Estado – cuja única ciência é a força, que só tem por doutrina, com as fórmulas de seus meirinhos, a teoria do pelotão e do batalhão -, tratando eternamente a nação como menor de idade, tencione, às suas custas e malgrado ela, sob pretexto de desacordo entre suas faculdades e suas tendências, gerir, administrar seus bens, julgar o que convém melhor a seus interesses, regular-lhe o movimento, a liberdade, a vida: eis o que seria inconcebível, o que revelaria uma maquinação infernal, se não soubéssemos, pela história uniforme de todos os governos, que se o poder em todos os tempos dominou o povo, é que em todos os tempos igualmente o povo, ignorante das leis da ordem, foi cúmplice do poder.

Se eu falasse a homens tendo amor pela liberdade e pelo respeito a eles próprios, e quisesse incitá-los à revolta, eu me limitaria, por toda arenga, a enumerar-lhes as atribuições de um prefeito.

Segundo os autores:

“O prefeito é agente do poder central; ele é intermediário entre o governo e o departamento; proporciona a ação administrativa; assegura diretamente, por seus próprios atos, as necessidades do serviço público.”

“Como agente do poder central, o prefeito exerce as ações que concernem os bens do Estado ou do departamento, e desempenha as funções de polícia.”

“Corno intermediário entre o poder e o departamento, faz publicar e executar as leis que lhe são transmitidas pelos ministros; dá força executiva aos papéis das contribuições; vice-versa, faz chegar ao poder as reivindicações, informações etc.”

Funções muito diversas que são a instrução, a direção, a impulsão, a inspeção, a vigilância, a estimação ou apreciação, o controle, a censura, a reforma, a recuperação, enfim a correção ou a punição.

“Como assegurador das necessidades do serviço público, o prefeito age ora como revestido de uma autoridade de tutela; ora como revestido de um comando; ora como exercendo uma jurisdição.”

Encarregado de negócios do departamento e do Estado, oficial de polícia judiciária, intermediário, plenipotenciário, instrutor, diretor, impulsor, inspetor, vigilante, apreciador, controlador, censor, reformador, recuperador, corregedor, tutor, comandante, intendente, edil, juiz. Eis o prefeito, eis o governo! E que venham me dizer que um povo submetido a semelhante regência, um povo assim tutelado, in chamo et freno, in baculo et virga , é um povo livre! que esse povo compreende a liberdade, que é capaz de experimentá-la e recebê-la! Não, não! Tal povo é menos que um escravo, é um cavalo de combate. Antes de libertá-lo, é necessário elevá-lo à dignidade de homem, refazendo seu entendimento. Ele próprio vos diz, na ingenuidade de sua consciência: o que me tornarei quando não tiver mais rédeas nem sela? Não conheço outra disciplina, outro estado. Desembaracem minhas idéias; regulem minhas afeições; equilibrem meus interesses, então não precisarei mais de senhor, poderei dispensar o cavaleiro!

Assim, a sociedade, por sua própria revelação, gira em círculo. Esse Governo, do qual ela se faz um princípio diretor, não é outra coisa, ela concorda com isso, senão o suplemento de sua razão. Assim como, entre a inspiração de sua consciência e a tirania de seus instintos, o homem se deu um moderador místico, que foi o padre, assim também entre a sua liberdade e a liberdade de seu semelhante, ele se impôs um árbitro que foi o juiz, e ainda, entre seu interesse privado e o interesse geral, supostos por ele tão inconciliáveis quanto seu instinto e sua razão, buscou um novo conciliador, que foi o príncipe. O homem, assim, despojou-se de seu caráter moral e de sua dignidade judiciária; abdicou a sua iniciativa, e por essa alienação de suas faculdades, fez-se o escravo impuro dos impostores e dos tiranos.

Todavia, desde Jesus Cristo, Isaías, Davi, o próprio Moisés, é admitido que o justo não necessita nem de sacrifício, nem de padre; e provamos há pouco que a instituição de uma justiça superior a alguém sujeito a ela é por princípio uma contradição, uma violação do pacto social. Ser-nos-á, então, mais difícil livrarmo-nos, para a realização de nossos deveres sociais e cívicos, da elevada intervenção do Estado?

O regime industrial, já o demonstramos, é o acordo dos interesses resultando da liquidação social, da gratuidade da circulação e do crédito, da organização das forças econômicas, da criação das companhias operárias, da constituição do valor e da propriedade.

Nesse estado de coisas, para que pode ainda servir o Governo? Para que a expiação? Para que a justiça? O CONTRATO resolve todos os problemas. O produtor trata com o consumidor, o associado com sua companhia, o camponês com sua comuna, a comuna com o cantão, o cantão com o departamento etc., etc. É sempre o mesmo interesse que transige, liquida-se, equilibra-se, repercute-se ao infinito; sempre a mesma ideia que se movimenta, de cada faculdade da alma, como de um centro para a periferia de suas atrações.

O segredo dessa equação entre o cidadão e o Estado, do mesmo modo que entre o crente e o padre, entre o demandante, e o juiz, está na equação econômica que desenvolvemos anteriormente, pela abolição do lucro capitalista, entre o trabalhador e o patrão, o arrendatário e o proprietário. Fazei desaparecer, pela reciprocidade das obrigações, esse último vestígio da antiga servidão, e os cidadãos e as comunas não mais necessitarão da intervenção do Estado para gerir seus bens, administrar suas propriedades, construir seus portos, suas pontes, seus cais, seus canais, suas estradas. (…)

Pierre Joseph Proudhon

Livro Deus e o Estado, de Bakunin, para baixar!

Esta edição de Deus e o Estado, cujo título não foi de autoria de Bakunin, recupera a primeira, de 1882, organizada por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, publicada em Genebra pela Gráfica Juraciana. No livro Bakounine – combats et idées, lançado pelo Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1979, p. 242, afirma Pierre Pécheaux em artigo intitulado “1882 – Deus e o Estado, editado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus”: “Este escrito, que é um fragmento da 2ª edição do Império Cnuto-Germânico e a Revolução Social, e o mais conhecido da obra de Bakunin, traduzido para uma quinzena de idiomas, é objeto de pelo menos 75 edições. De 1882 a 1973, levantamos 71 edições em quinze idiomas diferentes”. Neste mesmo livro há um outro artigo – “Balanço das publicações” -, onde Pécheaux declara que houve quatro versões de Deus e o Estado: a primeira, de 1882, de Carlo Cafiero e Elisée Reclus; a segunda, de 1895, de Max Nettlau; a terceira, uma combinação dos textos contidos nas duas anteriores e a quarta, do citado Nettlau, acrescida de outros escritos de 1870 e 1871. Em função dessas combinações variadas de textos, cria-se a confusão durante muitos anos a respeito do conteúdo de Deus e o Estado, título que coube a Carlo Cafiero, na edição de 1882, mas que foi aproveitado em diferentes edições subsequentes. A tradução para o português é de Plínio Augusto Coelho.

Link para download: 

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000020.pdf

Solidariedade e Justiça ao Povo Pataxó Hã-Hã Hãe

Solidariedade e Justiça ao Povo Pataxó Hã-Hã Hãe

25 de janeiro de 2024

Nós, da Federação Anarquista Capixaba, vimos por meio desta expressar nossa mais profunda solidariedade diante das violências e atrocidades que o povo Pataxó Hã-Hã Hãe e suas lideranças têm enfrentado no sul da Bahia. É inadmissível que tais situações de injustiça e violência continuem a ser perpetradas contra uma comunidade originária que tem vivido em harmonia com suas terras por gerações.

Repudiamos veementemente a aplicação da teoria do Marco Temporal, que busca deslegitimar a ocupação ancestral dos povos originários sobre as terras que lhes pertencem. Exigimos de forma categórica que a demarcação de seus territórios seja realizada imediatamente, respeitando a autenticidade e importância da história e cultura de seu povo.

É fundamental frisar que a retomada de seus territórios é um ato de justiça e resistência legítimo, luta pela qual nós seguimos lado a lado, em solidariedade e apoio incondicional.

Enviamos nossos mais profundos votos de força e coragem para que os companheiros Pataxós, verdadeiros donos daquela terra continuem resistindo e lutando por seus direitos e pela justiça que lhes é devida.

Em solidariedade,

FACA
Federação Anarquista Capixaba

Nota da Federação Anarquista Capixaba

Ao Movimento Anarquista em Geral,

E também aos caros membros da I.F.A – BR (Iniciativa Federalista Anarquista do Brasil),

É com pesar que informamos o desligamento de Paulo Henrique Oliveira (Linguiça) da nossa organização. Infelizmente, suas ações recentes feriram a carta de princípios da FACA, comprometendo os valores que prezamos. Dentro desse contexto,  reiteramos que ele não representa ou responde por nenhum ato de nossa federação e consequentemente da IFA – Brasil.

Agradecemos sua contribuição passada e reafirmamos nosso compromisso com uma comunidade coesa e alinhada aos princípios anarquistas.

Permanecemos abertos ao diálogo e à construção conjunta de um espaço verdadeiramente democrático.

Saudações Anarquistas! 

FEDERAÇÃO ANARQUISTA CAPIXABA – FACA 

Encontro Libertário da FACA!

A Federação Anarquista Capixaba – FACA, convida a tod@s para este momento e espaço de convivência anarquista que terá lugar no dia 09 de Setembro de 2023, a partir das 12 horas, na Lacarta Circo Teatro, na cidade de Vitória – ES.

Diversas atividades ocorrerão, em um ambiente anticapitalista e antiestatal, propiciando uma oportunidade de articulação e interação!

Também celebraremos o primeiro aniversário da Federação e realizaremos um balanço das iniciativas realizadas até o momento, mirando no futuro e cerrando fileiras nas lutas do presente. 

Viva o anarquismo!

Viva a FACA! 

 

 

Documentário “Viver a Utopia”

Com o intuito de contribuir e difundir a cultura e história anarquista, compartilhamos comentamos/compartilhamos o documentário “Vivir la Utopía” (Vive a Utopia), produzido no ano de 1997 e que descreve a experiência anarcosindicalista e anarcocomunista vivida na Espanha que transformou radicalmente as estruturas da sociedade no contexto da Revolução Espanhola, ocorrida durante a Guerra Civil Espanhola entre 1936 e 1939.

 

Assista aqui, com legendas em português:

 

 

Federação Anarquista Capixaba – FACA. 

Rumo à Anarquia

Por Errico Malatesta

É muito freqüente acreditar que pelo fato de dizermo-nos revolucionários, achamos que o advento da anarquia deva produzir-se de uma só vez, como conseqüência imediata de uma insurreição, que abateria de forma violenta tudo o que existe e o substituiria por instituições verdadeiramente novas. Para dizer a verdade, não faltam camaradas que assim concebem a revolução.

Este mal-entendido explica porque entre nossos adversários, muitos creem, de boa fé, que a anarquia é uma coisa impossível; e isto também explica porque certos camaradas, vendo que a anarquia não pode medrar repentinamente, tendo em vista as condições morais atuais da massa, vivem entre um dogmatismo que os põe fora da vida real e um oportunismo que os faz quase esquecer que são anarquistas e, nesta qualidade, devem combater a favor da anarquia.

Ora, é certo que o triunfo da anarquia não pode ser efeito de um milagre, assim como não pode produzir-se a despeito de, e em contradição com a lei da evolução: que nada aconteça sem causa suficiente, que nada se possa fazer se faltar a força necessária.

Se quiséssemos substituir um governo por outro, isto é, impor nossa vontade aos outros, bastaria, para isto, adquirir a força material indispensável para abater os opressores e colocarmo-nos em seu lugar.

Mas, ao contrário, queremos a Anarquia, isto é, uma sociedade fundada sobre o livre e voluntário acordo, na qual ninguém possa impor sua vontade a outrem, onde todos possam fazer como bem entendem e concorrer voluntariamente para o bem-estar geral. Seu triunfo só será definitivo, universal, quando todos os homens não mais quiserem ser comandados nem comandar outras pessoas, e tiverem compreendido as vantagens da solidariedade para saber organizar um sistema social no qual não haverá mais marca de violência e de coação.

Por outro lado, assim como a consciência, a vontade, a capacidade, aumentam gradualmente e só podem encontrar oportunidade e meios de se desenvolverem na transformação gradual do meio e na realização das vontades à medida em que elas se formam e se tornam imperiosas; assim, também, a anarquia instaurar-se-á pouco a pouco, para se intensificar e se ampliar cada vez mais.

Não se trata, portanto, de chegar à anarquia hoje ou amanhã, ou em dez séculos, mas caminhar rumo a anarquia hoje, amanhã e sempre.

A anarquia é a abolição do roubo e da opressão do homem pelo homem, quer dizer, a abolição da propriedade individual e do governo; a anarquia é a destruição da miséria, da superstição e do ódio. Portanto, cada golpe desferido nas instituições da propriedade individual e do governo, é um passo rumo à anarquia, assim como cada mentira desvelada, cada parcela de atividade humana subtraída ao controle da autoridade, cada esforço tendendo a elevar a consciência popular e a aumentar o espírito de solidariedade e de iniciativa, assim como a igualar as condições.

O problema reside no fato de saber escolher a via que de fato nos aproxima da realização de nosso ideal, e de não confundir os verdadeiros progressos com essas reformas hipócritas, que, a pretexto de melhorias imediatas, tendem a afastar o povo da luta contra a autoridade e o capitalismo, a paralisar sua ação e a deixá-lo esperar que algo possa ser obtido pela bondade dos patrões e dos governantes. O problema consiste em saber empregar o quinhão de forças que possuímos e que adquirimos de modo mais econômico e mais útil ao nosso objetivo.

Hoje, em todos os países há um governo que, pela força brutal, impõe a lei a todos, obriga-nos a nos deixar explorar e a manter, quer isto nos agrade ou não, as instituições existentes, a impedir que as minorias possam colocar em ação suas idéias e que a organização social, em geral, possa modificar-se segundo as variações da opinião pública. O curso regular, pacífico, da evolução parou pela violência, e é pela violência que será preciso abrir-lhe caminho. É por isso que queremos a revolução violenta, hoje, e a queremos sempre assim, pelo tempo que quiserem impor a alguém, pela força, uma coisa contrária à sua vontade. Suprimida a violência governamental, nossa violência não teria mais razão de ser.

Não podemos, no momento, destruir o governo existente, talvez não possamos, amanhã, impedir que sobre as ruínas do atual governo, um outro surja; mas isto não nos impede, hoje, assim como não nos impedirá, amanhã, de combater não importa que governo, recusando submetermo-nos à lei toda vez que isto nos for possível, e opor a força à força.

Toda vez que a autoridade é enfraquecida, toda vez que uma grande parcela de liberdade é conquistada e não mendigada, é um progresso rumo à anarquia. Da mesma forma, também é um progresso toda vez que consideramos o governo como um inimigo com o qual nunca se deve fazer trégua, depois de nos termos convencido que a diminuição dos males por ele engendrados só é possível pela redução de suas atribuições e de sua força, não pelo aumento do número dos governantes ou pelo fato de elegê-los pelos próprios governados. E por governo entendemos todo homem ou agrupamento de indivíduos, no Estado, nos Conselhos, na municipalidade ou na associação, que tenha o direito de fazer a lei ou de a impor àqueles a quem ela não agrada.

Não podemos, no momento, abolir a propriedade individual, não podemos neste instante dispor dos meios de produção necessários para trabalhar livremente; talvez ainda não possamos quando de um próximo movimento insurrecional; mas isto não nos impede, a partir de hoje, assim como não nos impedirá, amanhã, de combater continuamente o capitalismo. Toda a vitória, por menor que seja, dos trabalhadores contra o patronato, todo esforço contra a exploração, toda parcela de riqueza subtraída aos proprietários e posta à disposição de todos, será um progresso, um passo rumo à anarquia. Assim, também, será um progresso todo fato que tenda a aumentar as exigências dos operários e a dar mais atividade à luta, todas as vezes que pudermos encarar o que tivermos ganhado, como uma vitória sobre o inimigo, não como uma concessão à qual deveríamos ser agradecidos, toda vez que afirmamos nossa vontade de tomar pela força, aos proprietários, os direitos que, protegidos pelo governo, subtraíram dos trabalhadores.

Uma vez desaparecido da sociedade humana o direito da força, os meios de produção colocados à disposição daqueles que querem produzir, o resto será resultado da evolução pacífica.

A anarquia ainda não estaria realizada ou só o estaria para aqueles que a desejam, e somente para as coisas em que o concurso dos não-anarquistas não é indispensável. Ela se ampliará, assim, ganhando pouco a pouco os homens e as coisas, até abraçar toda a humanidade e todas as manifestações da vida.

Uma vez desaparecido o governo, com todas as instituições nocivas que protege, uma vez conquistada a liberdade para todos assim como o direito aos instrumentos de trabalho, sem o qual a liberdade é uma mentira, só pensamos destruir as coisas à medida em que pudermos substituí-las por outras. Por exemplo: o serviço de abastecimento é mal feito na sociedade atual. Ele se efetua de modo anormal, com grande desperdício de forças e de material, e somente em vista dos interesses dos capitalistas; mas, em suma, de qualquer modo que se opere o consumo, seria absurdo querer desorganizar este serviço, se não estamos prontos a assegurar a alimentação do povo de uma forma mais lógica e equitativa.

Existe o serviço dos correios, temos mil críticas a fazer-lhe, mas, no momento, servimo-nos dele para enviar nossas cartas ou para recebê-las, suportemo-lo, portanto, enquanto não pudermos corrigi-lo.

Existem escolas, infelizmente muito ruins, entretanto não desejaríamos que nossos filhos permanecessem sem aprender a ler e a escrever, esperando que possamos organizar escolas-modelos suficientes para todos.

Vemos, portanto, que para instaurar a anarquia não basta ter a força material para fazer a revolução, mas é também preciso que os trabalhadores associados, segundo os diversos ramos de produção, estejam em condições de assegurar, por eles próprios, o funcionamento da vida social, sem o auxílio dos capitalistas e do governo.

Pode-se também constatar que as idéias anárquicas, longe de estarem em contradição com as leis da evolução estabelecidas pela ciência, como o garantem os socialistas científicos, são concepções que se adaptam perfeitamente a elas: é o sistema experimental, transportado do campo das pesquisas para o das realizações sociais.

Fonte: https://bibliotecaanarquista.org/library/errico-malatesta-rumo-a-anarquia

Amor e Anarquia

Por Errico Malatesta

Pode parecer estranho que as questões relativas ao amor e todas aquelas a ele relacionadas preocupem mais a um grande número de homens e mulheres do que os problemas mais urgentes, senão mais importantes, e que deveriam chamar a atenção e concentrar esforços dos que buscam o modo de superar males que afligem a humanidade.

Encontramos diariamente pessoas submetidas ao comando das instituições atuais; pessoas obrigadas a alimentar-se mal e ameaçadas a qualquer momento de cair na mais profunda miséria pela falta de trabalho ou em decorrência de enfermidades; pessoas que se veem impossibilitadas de criar convenientemente os filhos, que morrem frequentemente por falta de cuidados necessários; pessoas condenadas a passar a vida sem ser um só dia donas de si mesmas, sempre a mercê dos patrões ou da polícia; pessoas para as quais o direito de ter uma família e o direito de amar é uma ironia sangrenta e que, contudo, não aceitam os meios que lhes propomos para libertar-se da escravidão política e econômica se antes não soubermos explicar-lhes de que maneira, numa sociedade libertária, a necessidade de amar encontrará sua satisfação e de que modo compreendemos a organização da família. E, naturalmente, esta preocupação se amplia e gera descuido e desprezo dos outros problemas nas pessoas que tenham resolvido, particularmente, o problema da fome e que se encontram em condições de poder satisfazer as necessidades mais imperiosas porque vivem num ambiente de relativo bem-estar.

Isto explica o imenso lugar que ocupa o amor na vida moral e material do homem, pois é no lar e na família que o homem passa a maior e a melhor parte de sua vida. Explica-se também por uma tendência em direção ao ideal que arrebata o espírito humano no momento em que este se abre para a conscientização.

Entretanto, o homem sofre sem dar-se conta dos sofrimentos, sem buscar remédios e sem rebelar-se; vive semelhante aos incapazes, aceitando a vida como ela se apresenta.

Mas, desde o instante em que começa a pensar e a compreender que seus males não se devem a insuperáveis fatalidades naturais, senão a causas humanas que os homens podem destruir, experimenta imediatamente uma necessidade de perfeição e deseja, idealmente ao menos, gozar de uma sociedade em que reine absoluta harmonia e em que a dor desapareça por completo e para sempre.

Esta tendência é muito útil, pois impulsiona a vida para frente, mas também se faz nociva quando, sob o pretexto de que é impossível alcançar a perfeição e suprimir todos os perigos e defeitos, nos aconselha a descuidar das realizações possíveis para continuar na mesma situação.

* * * *

Não temos nenhuma solução para os males do amor, pois eles não podem ser destruídos com reformas sociais, nem tampouco com uma mudança de costumes. Estão determinados por sentimentos profundos, poderíamos dizer fisiológicos do homem e que não são modificáveis. Quando o são isto se deve a uma lenta evolução e são imprevisíveis.

Queremos a liberdade; queremos que homens e mulheres possam amar-se e unir-se livremente sem outro motivo que o amor, sem nenhuma violência legal, econômica ou física.

Mas a liberdade, mesmo sendo a única solução que podemos e devemos oferecer, não resolve radicalmente o problema, pois o amor, para satisfazer-se, tem necessidade de duas liberdades que concordam e que frequentemente discordam; e deve-se levar em conta que a liberdade de fazer o que se quer é uma frase desprovida de sentido quando não se sabe o que querer.

É muito fácil dizer: “quando um homem e uma mulher se amam, juntam-se, e quando deixam de se amar, separam-se”. Entretanto, para que este princípio se converta em regra geral e segura de felicidade é necessário que ambos amem e deixem de se amar ao mesmo tempo. E se um ama mas não é correspondido? E se um continua amando e o outro não o ama mais e trata de satisfazer uma nova paixão? E se um ama ao mesmo tempo várias pessoas que não podem adaptar-se a esta promiscuidade?

“Sou feio”, dizia-nos certa vez um amigo. “Que farei se ninguém deseja me amar?” A pergunta nos leva ao riso mas nos deixa entrever verdadeiras tragédias.

Ainda preocupados com o mesmo problema, dizemos: “atualmente, se não encontro o amor, compro-o, ainda que tenha que economizar na alimentação. O que farei quando não houver mulheres que se vendam?” A pergunta é horrível, pois mostra o desejo de que seres humanos sejam obrigados pela fome a prostituir-se; mas é também terrível… e, terrivelmente, humano.

Algumas pessoas dizem que a solução poderia encontrar-se na abolição radical da família; na abolição da parceria sexual mais ou menos estável, reduzindo o amor somente ao ato físico ou, melhor dizendo, transformando-o, com a união sexual por acréscimo, num sentimento parecido à amizade, que reconheça a multiplicidade, a variedade, a contemporaneidade dos afetos.

E os filhos? Filhos de todos.

Pode ser abolida a família? Isto deve ser desejado?

Observemos antes de mais nada que apesar do regime de opressão e mentira que prevaleceu e prevalece ainda na família, esta tem sido e continua sendo o maior fator do desenvolvimento humano, pois é nela que o homem comum se sacrifica pelo homem e cumpre o bem pelo bem, sem desejar outra compensação que o amor da companheira e dos filhos.

Uma vez eliminadas as questões de interesses, todos os homens serão irmãos e se amarão mutuamente?

Certamente não se odiarão; o que podemos afirmar é que o sentimento de simpatia e de solidariedade se desenvolveria muito e que o interesse geral dos homens se converteria num fator importante na determinação da conduta de cada um.

Mas isto ainda não é o amor. Amar a todos se parece muito com não amar a ninguém.

Podemos talvez socorrer, mas certamente não podemos chorar por todas as desgraças porque nossa vida deslizaria para um vale de lágrimas, porém o pranto da simpatia é o consolo mais doce para um coração que sofre. A estatística das mortes e dos nascimentos pode nos oferecer dados interessantes para se conhecer as necessidades da sociedade; mas não dizem nada aos nossos corações. É materialmente impossível entristecermo-nos com cada homem que morre e regozijarmo-nos a cada nascimento.

E se não amamos uma pessoa mais vivamente que as outras; se não tivermos um só ser pelo qual não estejamos particularmente dispostos a sacrificarmo-nos; se não conhecemos outro amor que este amor moderado, vago, quase teórico, que podemos sentir por todos, não resultaria a vida menos rica, menos fecunda, menos bela? Não se veria diminuída a natureza humana em seus mais belos impulsos? Por acaso não nos veríamos privados dos gozos mais profundos? Não seríamos mais infelizes?

O amor é o que é. Quando se ama fortemente se sente a necessidade do contato, da possessão exclusiva do ser amado.

Os ciúmes, no melhor sentido da palavra, parecem formar e formam geralmente uma só coisa com o amor. Isto pode ser lamentável, mas não pode ser alterado arbitrariamente, nem tampouco segundo a vontade de quem o sofre.

Para nós o amor é uma paixão que engendra tragédias por si mesma. Estas tragédias, certamente, não se traduziriam mais em atos violentos e brutais se o homem tivesse o sentimento de respeito à liberdade alheia, se tivesse bastante controle de si para compreender que não se soluciona um mal com outro maior, e se a opinião pública não fosse, como hoje em dia, tão indulgente com os crimes passionais; mesmo assim as tragédias não deixariam de ser menos dolorosas.

Enquanto os homens tiverem os sentimentos que possuem – e uma troca no regime econômico e político da sociedade não nos parece suficiente para modificá-los por inteiro – o amor produzirá ao mesmo tempo grandes alegrias e grandes tristezas. Poder-se-á diminuí-los ou atenuá-los com a supressão de todas as causas que podem ser eliminadas, mas sua destruição completa é impossível.

Esta é uma das razões para não se aceitar nossas ideias e querer permanecer no estado atual? Responder afirmativamente seria fazer como aquele sujeito que não podendo comprar roupas luxuosas prefere ir nu, ou como aquele que não podendo comer perdizes todos os dias renuncia ao pão, ou ainda como o médico que dada a impotência da ciência atual ante certas enfermidades, nega-se a curar as que são passíveis de cura.

Eliminemos a exploração do homem pelo homem, combatamos a pretensão brutal do macho que se crê dono da fêmea; combatamos os preconceitos religiosos, sociais e sexuais; asseguremos a todos, homens, mulheres e crianças o bem-estar e a liberdade; propaguemos a instrução; e então poderemos regozijarmo-nos, com razão, se não permanecerem mais do que males de amor.

Em todo caso, os desafortunados no amor poderão procurar outros gozos, pois não acontecerá como hoje em dia que o amor e o álcool constituem os únicos consolos para a maior parte da humanidade.

Fonte: https://bibliotecaanarquista.org/library/errico-malatesta-amor-e-anarquia 

Apresentação

Quando de sua fundação, em 11 de setembro de 2022, a Federação Anarquista Capixaba – FACA assumiu para si a responsabilidade de agrupar as individualidades anarquistas no território dominado pelo Estado do Espírito Santo, contribuindo assim com a luta e transformação anticapitalista e antiautoritária.

Dessa forma, sabemos que a comunicação, troca e divulgação de ideias é fundamental para o desenvolvimento dos indivíduos e movimentos políticos e sociais, de modo que a FACA, inaugura este espaço digital público com a intenção de expor seus posicionamentos e atividades.

Que tenhamos aqui mais uma trincheira em prol da Liberdade.

Que viva a Anarquia sempre!

Federação Anarquista Capixaba – FACA

Contato: fedca@riseup.net

 

1º de Maio Autônomo, Combativo e Anarquista: um relato

Depois de muitos anos, o centro da cidade de Vitória, território dominado pelo estado do Espírito Santo, novamente viu tremular a bandeira preta e vermelha da anarquia.

Logo cedo, a partir das nove da manhã, os membros da Federação Anarquista Capixaba – FACA, bem como de diversos movimentos sociais e culturais, começaram a se agrupar para realização do ato do 1º de Maio. Uma estrutura com som fora providenciada, mesa gratuita com café da manhã (e mais tarde, almoço), exposição de livros, distribuição de panfletos, zines e jornais também marcaram o dia.

As quase seiscentas pessoas que compareceram ao ato, de norte a sul do estado, que também não deixou de ser um contraponto ao outro convocado pelas tradicionais centrais sindicais, respiraram, conspiraram e sonharam um mundo melhor, no qual o Capital e o Estado não mais ditam os rumos de nossa existência.

Que muitas outras jornadas de luta e protesto venham!

Pela anarquia, sempre!

Federação Anarquista Capixaba – FACA.