[México] Jornadas Anárkicas Apocalípticas | Primavera Negra

Quando chegou o apocalipse, que não nos demos conta? Qual foi o dia decisivo? Amanhecemos sepultados no cimento cinza. Dos fogos que havia só se vê carvão, e o vento o vai desmoronando. Mas algumas brasas ocultas ainda estão acesas.

Os espaços que habitamos e defendemos resistiram, e os projetos seguem neste contexto, não é pouca coisa. Mas nos damos conta de que se dedicaram muito para os processos internos, e para a sobrevivência mesma. É para o que davam as energias, as forças, e as necessidades. Agora, nos damos conta de que quiséramos voltar a trabalhar para fora e tecermos com outros, que este espaço que cuidamos como uma pequena brasa se reúna com outras que faz tempo começam a mover-se, para acender de novo um fogo. É um desejo nosso e uma resposta a chamados que escutamos desde outros territórios, a vozes levadas por uma mesma corrente que também estão buscando reunir-se e conspirar.

Uma forma que escolhemos para reencontrar-nos com outras resistências, projetos e individualidades é pôr o espaço em um evento onde possamos nos reunir. Queremos que esta primavera seja negra como a noite, ante o brilho artificial de morte e dominação que vem desde o poder. Por isso lhes propomos aproximar-nos às brasas este 26, 27 e 28 de abril a conversar, conspirar e compartilhar na penumbra, nesta outra cidade monstro às costas da Barranca de Huentitán chamada Guadalajara. Nos parece a ocasião perfeita para que voltem a brotar as flores da luta, a anarquia e a vida. Os convidamos a participar com atividades, textos, música, teatro, apresentações, palestras, conversas, gráfica ou o que gostem propor desde seus territórios.

Que a obscuridade se converta em um refúgio e deixe de representar medo e incerteza. Preparemos o terreno para este novo ciclo, semeemos as sementes de rebeldia para colher frutos de liberdade.

A chamada estará aberta até o dia 12 de abril. Para agendar as atividades, envie-nos um email para: laterka1312@riseup.net

Nunca é tarde para sair e brincar.

Amor e anarquia!

Tradução > Sol de Abril

agência de notícias anarquistas-ana

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2024/03/27/mexico-jornadas-anarkicas-apocalipticas-primavera-negra/

Solidariedade com o povo de Mimoso do Sul!

 

A Federação Anarquista Capixaba – FACA – se solidariza com a população da cidade de Mimoso do Sul, no sul do Espírito Santo, atingida por uma violenta enchente no último final de semana (22 e 23 de Março de 2024). Quase vinte pessoas, até o momento, perderam a vida em razão do ocorrido. Um fato terrível e que mais uma vez demonstra a incapacidade do Estado para gerir as nossas vidas, já que a região afetada é conhecida pela tendência à inundações e deslizamentos, sendo certo que o Estado nada fez para evitar o pior.

Clamamos aos companheiros e companheiras que transformem a palavra solidariedade em ação, doando itens de primeira necessidade nos diversos pontos espalhados no território capixaba, bem como contribuindo com os afetados e afetadas de todas as formas possíveis!

A FACA empenha seus braços e corações com o povo mimosense!

SÓ O POVO SALVA O POVO!

Federação Anarquista Capixaba – FACA

 

[Portugal] Anarquismo e Parlamentarismo

As políticas de conciliação da esquerda parlamentar com as classes dominantes continuarão a perpetuar as políticas neoliberais de repressão, violência, austeridade e pobreza. O fascismo só poderá ser derrotado fora do parlamento por todos os meios necessários, através da ação direta e da mobilização radical de massas nos movimentos sociais e nas ruas.

O início de 2024 trouxe-nos mais uma campanha eleitoral, com todo o exaustivo processo de propaganda partidária, debates televisivos e discussão política nas redes sociais e nos media, sobre qual o(s) partido(s) político(s) mais capaz(es) de resolver os problemas das pessoas em Portugal, através da sua ação na Assembleia da República. Os resultados são aqueles que mais se temiam. A esquerda reformista burguesa foi completamente esmagada encontra-se cada vez mais enfraquecida, com uma vitória do conservadorismo reacionário da Aliança Democrática e um enorme crescimento do fascismo (assumido) com mais de 40 deputados do Chega.

Estes resultados eleitorais são um enorme pontapé na esquerda legalista e reformista parlamentar, que acreditaram, e acreditam ainda, que se pode vencer o fascismo e o capitalismo pelo voto na democracia representativa burguesa.

O fascismo só poderá ser derrotado pela ação direta e a mobilização radical de massas nos movimentos sociais e nas ruas. Apenas a luta de massas organizada e o acúmulo de força social e poder popular por parte da classe trabalhadora, nas suas próprias organizações, pode derrotar o fascismo. Só com a destruição do capitalismo, do Estado, e de todas dominações é que podemos evitar que o fascismo volte. É um longo processo de educação, organização e luta popular e proletária que tem de ser desenvolvido o quanto antes. Deste modo, o anarquismo e o comunismo tornam-se as únicas soluções viáveis. Nunca o fascismo poderá ser derrotado num país estruturalmente e sistemicamente racista, colonial, patriarcal, queerfóbico e capitalista.

Enquanto anarquistas e comunistas libertários, não acreditamos no parlamentarismo como método de resolução dos problemas coletivos e individuais da nossa sociedade, nem no parlamento como órgão representativo dos interesses das classes trabalhadoras. O Estado, com os seus órgãos de poder e governação, é uma instituição de dominação da classe burguesa sobre o proletariado, os trabalhadores e despossuídos. Uma instituição burocrático-militar, baseada na centralização de poder nas mãos de uma minoria de representantes das classes dominantes e em relações sociais hierárquicas de dominação, exploração e opressão, mantendo a maioria dos membros de uma sociedade afastados das tomadas de decisão políticas, económicas e sociais que lhes dizem respeito. Enquanto órgão que se posiciona acima da sociedade e fora da sociedade, o Estado serve apenas para defender os interesses da burguesia e dos seus burocratas, proteger a propriedade privada e perpetuar a exploração. Enquanto o Estado existir, o capitalismo também continuará a existir, e nós continuaremos a ser impedidos de possuir em comunidade os nossos meios de produção e existência, esmagados por uma dominação impessoal e alienante.

O parlamento é, portanto, o órgão político da classe burguesa. Como tal, não é no parlamento que os trabalhadores, estudantes, desempregados e outros, devem procurar a satisfação das suas necessidades e dos seus interesses. E mais importante do que debater se devemos ou não apelar à abstenção, ao voto em branco ou qualquer outra tática eleitoral, é definir de que forma se pode e deve agir politicamente. Em que organizações, locais, espaços sociais, com que objetivos e através de que métodos de tomada de decisão. Por outras palavras, se o parlamento é um dos órgãos políticos da burguesia, quais são os nossos?

Desde o século XIX, o proletariado tem vindo a criar autonomamente órgãos de poder popular político e social. Sindicatos de trabalhadores, moradores e estudantes, cooperativas, assembleias de bairro, comissões de fábrica, comunas rurais, concelhos de trabalhadores (sovietes) são todos modos de organização desenvolvidos para combater o capitalismo. Coletivos de base, feministas e queer, antirracistas, antifascistas, redes de apoio mútuo, grupos de luta pela habitação, pela defesa do ambiente e luta ecológica, e até grupos culturais e desportivos populares, podem todos ter o papel de espaços de política dos oprimidos.

A luta do dia a dia, a construção revolucionária gradual, é feita diretamente e autonomamente pelos próprios trabalhadores, pelos próprios oprimidos. É essencial investirmos as nossas forças e energias na militância diária no âmbito sindical, habitacional, estudantil, feminista, queer, ambiental, antiprisional, antirracista, cultural, antimilitarista, anti-imperialista, anticolonialista, e não desperdiçar energias acreditando em campanhas eleitorais e na política burguesa.

Os órgãos de poder popular não surgem pré-definidos nem podem ser uma invenção de uns quantos teóricos pseudorrevolucionários, mas surgem da própria luta diária e historicamente específica dos próprios trabalhadores, estudantes, oprimidos e despossuídos. A construção do poder popular é um processo de autocriação e auto consciencialização, que só se pode concretizar através da luta concreta e das discussões nos espaços frequentados coletivamente pelos explorados. O caminho faz-se caminhando, e é na luta que poderemos definir qual é a melhor forma de nos organizarmos com base em relações sociais igualitárias e voluntárias, para satisfazer as nossas necessidades e os nossos interesses coletivos e individuais.

Enquanto anarquistas e comunistas, é nesses espaços que devemos focar a nossa militância diária, onde podemos agir coletivamente, levar as nossas ideias e propostas e construir novas, em conjunto com os oprimidos. De outra forma, tornamo-nos nada mais do que agentes passivos na nossa torre de marfim, incapazes de fazer nada, condenados a apelar ao mal menor no parlamento.

Porque depois das eleições continua tudo igual. As políticas de conciliação dos partidos de esquerda reformista parlamentar e legalista com as classes dominantes irão continuar a perpetuar as políticas neoliberais de repressão, violência, austeridade e pobreza. O fascismo, enquanto não for combatido fora do parlamento por todos os meios necessários, irá continuar a crescer e a receber apoio, aceitação e normalização por parte dos liberais assustados e conservadores oportunistas. As pessoas dos bairros e comunidades pobres e marginalizadas vão continuar a ser despejadas das suas casas ou a viver em condições miseráveis enquanto pagam rendas elevadas. Trabalhadores vão continuar a ser explorados, o meio ambiente destruído pelas políticas estatais e capitalistas. Atos machistas, racistas, homofóbicos e transfóbicos continuarão a ser praticados, ignorados e protegidos pelo Estado.

É urgente organizarmo-nos, com base na livre associação, autogestão, cooperação, ação direta, apoio mútuo, amor, solidariedade e diversidade. Construir e participar nas organizações de poder popular, acumular força social e comunitária, para transformar a sociedade, em direção à abolição de classes sociais, do Estado, da propriedade privada. À destruição de todas as prisões, do exército e da polícia. Ao combate de todas as relações sociais de dominação: o patriarcado, o racismo, a homofobia, transfobia, o militarismo, colonialismo, imperialismo, especismo, capacitismo e a destruição da natureza. Por uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição necessária para o livre desenvolvimento de todos, onde a liberdade do outro estenda a nossa ao infinito. Um mundo no qual os meios da nossa existência nos pertencem a todos, coletivamente.

O local de voto dos anarquistas, comunistas e das classes trabalhadoras não é nas eleições legislativas, é no movimento social, nos sindicatos horizontais, nas assembleias de bairro, nas organizações da nossa classe e para a nossa classe.

>> Para ler o texto na íntegra, clique aqui:

https://uniaolibertaria.pt/anarquismo-e-parlamentarismo-a-revolucao-nao-se-faz-nas-urnas/

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2024/03/26/portugal-anarquismo-e-parlamentarismo/

 

Justiça, Administração, Polícia – Pierre Joseph Proudhon

Justiça

Justiça, Autoridade, termos incompatíveis, mas que o homem comum obstina-se em fazer sinônimos. Ele diz autoridade de justiça, assim como governo do povo, por hábito do poder, e sem perceber a contradição. De onde vem essa depravação de idéias?

A justiça começou como a ordem, pela força. Lei do príncipe na origem, não da consciência; obedecida por temor, não por amor, ela se impõe em vez de expor: assim como o governo, não é outra coisa senão distribuição mais ou menos calculada do arbítrio.

Sem ir além de nossa história, a justiça era na Idade Média uma propriedade senhorial, cuja exploração ora se fazia pelo senhor em pessoa, ora era confiada a arrendatários ou intendentes. Estava-se à mercê da justiça do senhor como se estava sujeito à corveia, como ainda hoje se é contribuinte. Pagava-se para se fazer julgar, assim como para moer seu trigo e assar seu pão: é óbvio que aquele que pagava mais tinha maior chance de ter razão. Dois camponeses convictos de fechar um acordo diante de um árbitro teriam sido tratados como rebeldes, e o árbitro perseguido como usurpador. Pronunciar a justiça alheia, que crime abominável!…

Pouco a pouco, agrupando-se o país em volta do primeiro barão, que era o rei da França, presumiu-se que toda a justiça dele dependia, fosse como concessão da coroa aos feudatários, fosse como delegação a companhias executoras de justiça, cujos membros pagavam seus impostos, assim como hoje fazem os escrivães procuradores, mediante uma polpuda soma.

Enfim, desde 1789, a Justiça é exercida diretamente pelo Estado, que sozinho pronuncia julgamentos executórios , e fatura, sem contar as multas, uma soma fixa de 27 milhões. O que ganhou o povo com essa mudança? Nada. A Justiça permanece o que era antes, uma emanação da autoridade, isto é, uma fórmula de coerção radicalmente nula, e em todas as suas disposições, recusável. Não sabemos o que é a justiça.

Amiúde ouvi discutirem essa questão: tem a sociedade o direito de punir com a morte? Um italiano, gênio de resto assaz medíocre, Beccaria, construiu no século passado uma reputação pela eloquência com a qual refutou os partidários da pena de morte. E o Povo em 1848 acreditou ter feito maravilha, enquanto aguarda algo melhor, ao abolir essa pena em matéria política.

Mas nem Beccaria, nem os revolucionários de fevereiro abordaram o fundamental da questão. A aplicação da pena de morte é apenas um caso particular da justiça criminal. Ora, trata-se de saber se a sociedade tem o direito, não de matar, não de infligir uma pena, por mais leve que seja, nem mesmo de absolver e agraciar, mas de julgar.

Que a sociedade se defenda, quando é atacada, é seu direito.

Que ela se vingue, com risco de represálias, isso pode ser de seu interesse.

Mas que ela julgue, e, depois de ter julgado, puna, eis o que não aceito; não aceito porque recuso toda autoridade, qualquer que seja.

Só o homem tem o direito de se julgar, e se ele se sente culpado, se crê que a expiação é-lhe boa, de reivindicar para si um castigo. A justiça é um ato de consciência, essencialmente voluntário: ora, a consciência não pode ser julga condenada ou absolvida senão por si mesma: o resto é guerra, regime de autoridade e barbárie, abuso de força.

Vivo em companhia de infelizes – é o nome que eles se dão -, que a justiça arrasta diante dela por causa de roubo, falsificação, falência, atentado ao pudor, infanticídio, assassinato.

Compreendo que esses homens, em guerra com seus semelhantes, sejam intimados, obrigados a reparar o dano que causam, a suportar as conseqüências de seus atos, e até um certo ponto, ainda pagar a multa pelo escândalo e pela insegurança com maior ou menor premeditação, de que são sujeitos. Compreendo, eu dizia, e aplicação do direito da guerra entre inimigos. A guerra também pode ter, não digo sua justiça, seria profanar esse santo nome, mas sua balança.

Todavia, fora disso, que esses mesmos indivíduos sejam trancafiados, sob pretexto de penitência, em estabelecimentos de força, estigmatizados, acorrentados, torturados em seus corpos e suas almas, guilhotinados ou, o que é pior, colocados para cumprir suas penas sob a vigilância de uma polícia cujas inevitáveis revelações perseguem-nos no fundo de seu refúgio; mais uma vez nego, da maneira mais absoluta, que nada, nem na sociedade, nem na consciência, nem na razão, autoriza semelhante tirania. O Código não faz justiça, mas vingança, a mais iníqua e a mais atroz, último vestígio do antigo ódio das classes patrícias contra as classes servis.

Que pacto fizestes com esses homens, para que vos arrogueis o direito de torná-los responsáveis por seus crimes, pelo grilhão, pelo sangue, pelo ferrete? Que garantias ofereceste-lhes, pelas quais podeis vos gabar? Que condições eles tinham aceitado e que violaram? Que limite, imposto ao transbordamento de suas paixões e reconhecido por eles, excederam’? O que fizestes por eles, enfim, que eles devam ter feito por vós, e o que vos devem? Procuro o contrato livre e voluntário que os une, e só percebo a espada de justiça suspensa sobre suas cabeças, o gládio do poder. Exijo o compromisso textual e recíproco, assinado por suas mãos, que pronuncia sua decadência: só encontro as prescrições cominatórias e unilaterais de um pretenso legislador, que não pode ter autoridade a seus olhos senão pela assistência do carrasco.

Lá onde não há convenção, não pode haver, no foro exterior, nem crime nem delito. E pego-vos aqui por vossas próprias máximas: tudo o que não é proibido pela lei é permitido e A lei só dispõe para o futuro e não tem feito retroativo.

Pois bem! a lei – isso está escrito há sessenta anos em toda as vossas constituições – é a expressão da soberania do Povo, isto é, o contrato social, o engajamento pessoal do homem e do cidadão. Visto que não a desejei, que não consenti, não votei, não assinei, essa lei não me obriga a nada, ela não existe. Prejulgá-la antes de reconhecê-la, e beneficiar-vos dela contra mim malgrado minha protestação, é dar-lhe um efeito retroativo e violá-la. Todos os dias acontece-vos de anular um julgamento por um vício de forma. Mas não há sequer um de vossos atos que não esteja maculado de nulidade, e da mais monstruosa das nulidades, a suposição da lei. Soufflard, Lacenaire, todos os celerados que enviasses ao suplício, agitam-se em seus túmulos e acusam-vos de falsificação judiciária. O que tendes a responder-lhes?

Não falemos de consentimento tácito, de princípios eternos da sociedade, de moral das nações, de consciência religiosa. É precisamente porque a consciência universal reconhece um direito, uma moral, uma sociedade, que se deveria exprimir seus preceitos, e propô-los à adesão de todos. Vós o fizestes? Não! Editastes o que vos aprouve; e chamais esse édito de regra das consciências, ditame do consentimento universal. Oh! Há demasiada parcialidade em vossas leis, muitas coisas subentendidas, equivocadas, sobre as quais não estamos absolutamente de acordo. Protestamos contra vossas leis e contra vossa justiça.

Consentimento universal! Isso lembra o pretenso princípio, que nos apresentais também como uma conquista, segundo o qual todo acusado deve ser enviado diante de seus pares, que são seus.juízes naturais. Derrisão! Esse homem, que não foi chamado para discutir a lei, que não a votou, que sequer a leu, que não a compreenderia se pudesse lê-Ia, que nem mesmo foi consultado quanto à escolha do legislador, tem ele juízes naturais? Ora, capitalistas, proprietários, pessoas felizes, que se puseram de acordo com o governo, que gozam de sua proteção e de seu favor, estes são os juízes naturais do proletário! Esses são homens probos e livres que, sobre sua honra e sua consciência – que garantia para um acusado! -, diante de Deus – que nunca entendeu; diante dos homens, dentre os quais ele não está incluído, o declararão culpado; e se ele protesta contra as más condições que a sociedade lhe deu, se se recorda das misérias de sua vida e de todas as amarguras de sua existência, opor-lhe-ão o consentimento tácito e a consciência da espécie humana!

Não, não, magistrados, não sustentareis mais esse papel de violência e hipocrisia. Já é bastante que ninguém conteste vossa boa-fé, e que em consideração por essa boa-fé o futuro vos absolva, mas não ireis mais adiante. Não tendes valor par julgar; e essa falta de valor, essa nulidade de vossa investidura, ela vos foi implicitamente notificada no dia em que foi proclamado, diante do mundo, numa federação de toda a França, o princípio da soberania do Povo, que não é outro senão o da soberania individual.

Só há, lembrai-vos bem disso, uma única maneira de fazer justiça: que o acusado, ou simplesmente o intimado, o faça por si mesmo. Ora, ele o fará quando cada cidadão tiver aderido ao pacto social; quando, nessa convenção solene, os direitos as obrigações e as atribuições de cada um tiverem sido definidos, as garantias intercambiadas e a sanção subscrita.

Então a justiça, procedendo da liberdade, não será mais vingança, será reparação. Como não existirá mais oposição entre a lei da sociedade e a vontade do indivíduo, a recriminação ser-lhe-á estranha, ele só terá como refúgio a confissão.

Aí também a instrução dos processos se reduzirá a uma simples convocação de testemunhas, entre o queixoso e o acusado, entre o demandante e sua parte não será necessário outro intermediário senão os amigos aos quais solicitarão a arbitragem (…)

A abolição completa, imediata, sem transição, nem qualquer substituição que seja, das cortes e dos tribunais, é uma das primeiras necessidades da revolução. Qualquer prazo que se tome para as outras reformas (… ), em todos os casos, a supressão das autoridades judiciárias não pode sofrer adiamento. Do ponto de vista dos princípios, a justiça constituída é apenas uma fórmula do despotismo, por conseqüência, uma negação da liberdade e do direito. Lá onde deixarmos subsistir uma jurisdição, lá teremos erigido um monumento de contrarevolução, do qual ressurgirá cedo ou tarde uma autocracia política ou religiosa.

Do ponto de vista político, recolocar nas mãos das antigas magistraturas, imbuídas de idéias nefastas, a interpretação do novo pacto, seria tudo comprometer. Constatamos isso com grande facilidade: se os homens da justiça mostram-se impiedosos em relação a socialistas, é que o socialismo é a negação da função jurídica, assim como da lei que a determina. Quando o juiz sentencia um cidadão acusado, segundo a lei, por idéias, palavras ou escritos revolucionários, não é mais um acusado que ele golpeia, é um inimigo. Por respeito à justiça, suprimamos esse funcionário que, exercendo o direito, combate por sua toga e seu tribunal.

(…)

Administração, Polícia

Tudo é contradição em nossa sociedade: é por isso que não conseguimos nos entender e estamos sempre prontos à luta. A administração pública e a polícia vão oferecer-nos uma nova prova disso.

Se há hoje algo que pareça a todo mundo inconveniente, sacrílego, atentatório aos direitos da Razão e da Consciência, é um governo que, usurpando o campo da fé, teria a pretensão de regulamentar os deveres espirituais de seus subordinados. Mesmo aos olhos dos cristãos, semelhante tirania seria intolerável: na falta de insurreição, o martírio se encarregaria de responder. A Igreja, instituída do alto e inspirada, afirma seu direito de governar as almas; todavia, coisa extraordinária, e que da parte dela é um começo de liberalismo, recusa esse direito ao Estado. Não toquem no incensório, exclama aos príncipes. Sois os bispos de fora; somos os bispos de dentro. Diante de vós a fé é livre; a religião não provém de vossa autoridade.

Sobre esse ponto a opinião, ao menos na França, é unânime. O Estado ainda quer pagar o culto, e a Igreja aceitar a subvenção; quanto ao fundo do dogma e às cerimônias, o Estado não se imiscui de modo algum. Crede ou não, adorai ou não adorai nada, é ad libitiun . O Governo decidiu não mais intervir nos assuntos de consciência.

Ora, das duas uma: ou o Governo, fazendo esse sacrifício de iniciativa, caiu num grave erro; ou então, quis dar um passo para trás e nos dar uma primeira garantia de seu recuo. Por que, com efeito, se o Governo não se vê no direito de nos impor a religião, pretenderia em contrapartida nos impor a lei? Por que, não contente com essa autoridade de legislação, exerceria ainda uma autoridade de justiça? Por que uma autoridade de polícia? Por que, enfim, uma autoridade administrativa?…

Ora o Governo entrega-nos a direção de nossas almas – a parte mais séria de nosso ser – o governo da qual depende inteiramente – com nossa felicidade na outra vida – a ordem nesta aqui; e, tão logo se trata de nossos interesses materiais, assuntos comerciais, relações de boa vizinhança, as coisas mais vis, o Poder se mostra, intervém. O Poder é como a criada do padre, entrega a alma ao demônio; o que ele quer é o corpo. Desde que tenha a mão em nossos bolsos, zomba de nossos pensamentos. Ignomínia! Não podemos administrar nossos bens, acertar nossas contas, transigir sobre nossas diferenças, assegurar nossos interesses comuns, da mesma forma que não podemos sequer zelar por nosso bem-estar e cuidar de nossas almas? O que temos a ver com a legislação do Estado, a justiça do Estado, a polícia do Estado e a administração do Estado, mais do que com a religião do Estado? Que razão, que pretexto o Estado fornece dessa exceção à liberdade local e individual?

Dir-se-á que a contradição é apenas aparente; que a autoridade é, com efeito, geral e nada exclui; mas que, para seu mais perfeito exercício, ela teve de se dividir em dois poderes iguais e independentes: um, a Igreja, a quem é confiada a responsabilidade das almas; o outro, o Estado, a quem pertence o governo dos corpos.

A isso respondo, de início, que a separação do Estado e da Igreja não foi feita de modo algum com vistas a essa melhor organização, senão em conseqüência da incompatibilidade dos interesses que eles regem; em segundo lugar, que os resultados dessa separação foram os mais deploráveis, visto que a Igreja, tendo perdido a direção do temporal, acabou por não ser mais ouvida, mesmo no espiritual; enquanto o Estado, fingindo só se envolver com questões materiais e só as resolvendo pela força, perdeu o respeito e provocou por toda a parte a reprovação dos povos. E é precisamente por isso que o Estado e a Igreja, convictos, mas demasiado tarde, de sua indiscernibilidade, tentam hoje, por uma fusão impossível, reerguer-se, no momento mesmo em que a Revolução pronuncia simultaneamente sua dupla falência.

Mas nem a Igreja, faltando-lhe sanção política, poderia conservar a direção das idéias; nem o Estado, desprovido de princípios superiores, pode aspirar à dominação dos interesses; quanto à sua fusão, ela é ainda mais quimérica do que aquela entre a monarquia absoluta e a monarquia constitucional. O que a liberdade separou, a autoridade não reunirá.

Minha pergunta subsiste por completo: em virtude de que direito o Estado, indiferente às idéias e aos cultos, ateu como a lei, tenciona administrar os interesses?

A essa pergunta, inteiramente de direito e moralidade, opõem-nos:

1º Que os cidadãos e as comunas, não podendo conhecer interesses gerais, visto que não poderiam estar de acordo, necessitam de um árbitro soberano;

2º Que as coisas também não podendo caminhar em sua globalidade, unitariamente, se cada localidade, cada companhia, cada grupo de interesses fosse abandonado à sua própria inspiração, se os funcionários públicos recebessem tantas ordens diferentes, contraditórias, quanto há de interesses particulares, seria indispensável que a impulsão partisse de um motor único, conseqüentemente que os funcionários fossem nomeados pelo Governo.

Não se sai disso: antagonismo inevitável, fatal, dos interesses, eis o motivo; centralização ordenadora e hierárquica, eis a conclusão.

Foi segundo esse raciocínio que nossos pais, em 93, após terem destruído o direito divino, o regime feudal, a distinção de classes, as justiças senhoriais etc., reformaram um governo que tinha sua fonte no mandato eleitoral, e condenaram o partido da Gironda, que, sem poder dizer como tencionava conservar a unidade, não queria, contudo, segundo sustentam, centralização.

Podemos julgar os frutos dessa política.

(…)

Assim como a religião de Estado é o estupro da consciência, a centralização administrativa é a castração da liberdade. Instituições fúnebres, emanadas do mesmo furor de opressão e intolerância, e cujos frutos envenenados mostram muito bem a analogia! A religião de Estado produziu a Inquisição, a administração de Estado engendrou a polícia.

É verdade, compreendemos que o sacerdócio – que foi de início, assim como o corpo dos mandarins chineses, apenas uma casta de homens sábios e letrados tenha conservado pensamentos de centralização religiosa: a ciência, intolerante ao erro, como o gosto ao ridículo, aspira legitimamente ao privilégio de instruir a razão. O sacerdócio goza dessa prerrogativa desde que teve por programa a ciência, cuja característica é ser experimental e progressiva; ele a perdeu tão logo se pôs em contradição com o progresso e a experiência.

Mas que o Estado – cuja única ciência é a força, que só tem por doutrina, com as fórmulas de seus meirinhos, a teoria do pelotão e do batalhão -, tratando eternamente a nação como menor de idade, tencione, às suas custas e malgrado ela, sob pretexto de desacordo entre suas faculdades e suas tendências, gerir, administrar seus bens, julgar o que convém melhor a seus interesses, regular-lhe o movimento, a liberdade, a vida: eis o que seria inconcebível, o que revelaria uma maquinação infernal, se não soubéssemos, pela história uniforme de todos os governos, que se o poder em todos os tempos dominou o povo, é que em todos os tempos igualmente o povo, ignorante das leis da ordem, foi cúmplice do poder.

Se eu falasse a homens tendo amor pela liberdade e pelo respeito a eles próprios, e quisesse incitá-los à revolta, eu me limitaria, por toda arenga, a enumerar-lhes as atribuições de um prefeito.

Segundo os autores:

“O prefeito é agente do poder central; ele é intermediário entre o governo e o departamento; proporciona a ação administrativa; assegura diretamente, por seus próprios atos, as necessidades do serviço público.”

“Como agente do poder central, o prefeito exerce as ações que concernem os bens do Estado ou do departamento, e desempenha as funções de polícia.”

“Corno intermediário entre o poder e o departamento, faz publicar e executar as leis que lhe são transmitidas pelos ministros; dá força executiva aos papéis das contribuições; vice-versa, faz chegar ao poder as reivindicações, informações etc.”

Funções muito diversas que são a instrução, a direção, a impulsão, a inspeção, a vigilância, a estimação ou apreciação, o controle, a censura, a reforma, a recuperação, enfim a correção ou a punição.

“Como assegurador das necessidades do serviço público, o prefeito age ora como revestido de uma autoridade de tutela; ora como revestido de um comando; ora como exercendo uma jurisdição.”

Encarregado de negócios do departamento e do Estado, oficial de polícia judiciária, intermediário, plenipotenciário, instrutor, diretor, impulsor, inspetor, vigilante, apreciador, controlador, censor, reformador, recuperador, corregedor, tutor, comandante, intendente, edil, juiz. Eis o prefeito, eis o governo! E que venham me dizer que um povo submetido a semelhante regência, um povo assim tutelado, in chamo et freno, in baculo et virga , é um povo livre! que esse povo compreende a liberdade, que é capaz de experimentá-la e recebê-la! Não, não! Tal povo é menos que um escravo, é um cavalo de combate. Antes de libertá-lo, é necessário elevá-lo à dignidade de homem, refazendo seu entendimento. Ele próprio vos diz, na ingenuidade de sua consciência: o que me tornarei quando não tiver mais rédeas nem sela? Não conheço outra disciplina, outro estado. Desembaracem minhas idéias; regulem minhas afeições; equilibrem meus interesses, então não precisarei mais de senhor, poderei dispensar o cavaleiro!

Assim, a sociedade, por sua própria revelação, gira em círculo. Esse Governo, do qual ela se faz um princípio diretor, não é outra coisa, ela concorda com isso, senão o suplemento de sua razão. Assim como, entre a inspiração de sua consciência e a tirania de seus instintos, o homem se deu um moderador místico, que foi o padre, assim também entre a sua liberdade e a liberdade de seu semelhante, ele se impôs um árbitro que foi o juiz, e ainda, entre seu interesse privado e o interesse geral, supostos por ele tão inconciliáveis quanto seu instinto e sua razão, buscou um novo conciliador, que foi o príncipe. O homem, assim, despojou-se de seu caráter moral e de sua dignidade judiciária; abdicou a sua iniciativa, e por essa alienação de suas faculdades, fez-se o escravo impuro dos impostores e dos tiranos.

Todavia, desde Jesus Cristo, Isaías, Davi, o próprio Moisés, é admitido que o justo não necessita nem de sacrifício, nem de padre; e provamos há pouco que a instituição de uma justiça superior a alguém sujeito a ela é por princípio uma contradição, uma violação do pacto social. Ser-nos-á, então, mais difícil livrarmo-nos, para a realização de nossos deveres sociais e cívicos, da elevada intervenção do Estado?

O regime industrial, já o demonstramos, é o acordo dos interesses resultando da liquidação social, da gratuidade da circulação e do crédito, da organização das forças econômicas, da criação das companhias operárias, da constituição do valor e da propriedade.

Nesse estado de coisas, para que pode ainda servir o Governo? Para que a expiação? Para que a justiça? O CONTRATO resolve todos os problemas. O produtor trata com o consumidor, o associado com sua companhia, o camponês com sua comuna, a comuna com o cantão, o cantão com o departamento etc., etc. É sempre o mesmo interesse que transige, liquida-se, equilibra-se, repercute-se ao infinito; sempre a mesma ideia que se movimenta, de cada faculdade da alma, como de um centro para a periferia de suas atrações.

O segredo dessa equação entre o cidadão e o Estado, do mesmo modo que entre o crente e o padre, entre o demandante, e o juiz, está na equação econômica que desenvolvemos anteriormente, pela abolição do lucro capitalista, entre o trabalhador e o patrão, o arrendatário e o proprietário. Fazei desaparecer, pela reciprocidade das obrigações, esse último vestígio da antiga servidão, e os cidadãos e as comunas não mais necessitarão da intervenção do Estado para gerir seus bens, administrar suas propriedades, construir seus portos, suas pontes, seus cais, seus canais, suas estradas. (…)

Pierre Joseph Proudhon

Livro Deus e o Estado, de Bakunin, para baixar!

Esta edição de Deus e o Estado, cujo título não foi de autoria de Bakunin, recupera a primeira, de 1882, organizada por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, publicada em Genebra pela Gráfica Juraciana. No livro Bakounine – combats et idées, lançado pelo Instituto de Estudos Eslavos, Paris, 1979, p. 242, afirma Pierre Pécheaux em artigo intitulado “1882 – Deus e o Estado, editado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus”: “Este escrito, que é um fragmento da 2ª edição do Império Cnuto-Germânico e a Revolução Social, e o mais conhecido da obra de Bakunin, traduzido para uma quinzena de idiomas, é objeto de pelo menos 75 edições. De 1882 a 1973, levantamos 71 edições em quinze idiomas diferentes”. Neste mesmo livro há um outro artigo – “Balanço das publicações” -, onde Pécheaux declara que houve quatro versões de Deus e o Estado: a primeira, de 1882, de Carlo Cafiero e Elisée Reclus; a segunda, de 1895, de Max Nettlau; a terceira, uma combinação dos textos contidos nas duas anteriores e a quarta, do citado Nettlau, acrescida de outros escritos de 1870 e 1871. Em função dessas combinações variadas de textos, cria-se a confusão durante muitos anos a respeito do conteúdo de Deus e o Estado, título que coube a Carlo Cafiero, na edição de 1882, mas que foi aproveitado em diferentes edições subsequentes. A tradução para o português é de Plínio Augusto Coelho.

Link para download: 

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000020.pdf